PRESERVAÇÃO DIGITAL É PREOCUPAÇÃO DO GOOGLE

Vice-presidente alerta sobre o risco de uma nova Idade das Trevas Digital.

A Preservação Digital está deixando de ser preocupação exclusiva dos profissionais de Informação.  O matemático e engenheiro de sistemas, Vinton Cerf, conhecido como “um dos pais da internet”, diz que é possível perdermos todos os nossos registros históricos do século 21.

Durante o encontro anual da Associação Americana para o Avanço das Ciências, em San Jose, na Califórnia, realizado em 13 de fevereiro, Vinton Cerf, um dos vice-presidentes do Google, afirmou que o mundo pode entrar em uma “Idade das Trevas Digital” e que gerações futuras podem vir a ter poucos ou mesmo nenhum registro do século 21.

Cerf diz estar preocupado com a ideia de perdermos todas as imagens e documentos que salvamos em computadores, na medida em que hardwares e softwares se tornam obsoletos. Segundo ele, já estamos passando por isso. “Formatos antigos de documentos que criamos podem não ser legíveis pelas versões mais recentes dos softwares, porque a compatibilidade com versões anteriores não é sempre garantida”, informa à BBC[1].

Cerf acredita que, cada vez mais, a nossa vida, nossas memórias e fotos de família mais queridas se encontram em bits de informação – em nossos discos rígidos ou “nas nuvens” – mas, por causa da permanente revolução digital, há um risco de que elas se percam porque software, hardware e formatos se tornam obsoletos com o desenvolvimento acelerado da indústria.

Recentemente o Google foi obrigado a reconhecer o direito ao esquecimento.  Assim, pode-se perguntar se a defesa da preservação digital feita pelo “evangelista chefe da Internet” no Google, em oposição ao esquecimento digital, não tem um viés corporativo. No entanto, o vice-presidente do Google reconhece que o problema é de duplo sentido. “A internet é uma coisa estranha: ela lembra-se de coisas que não queremos lembrar e esquece-se das coisas que queremos lembrar”, disse ele.

De acordo com Cerf, existe uma grande quantidade de informação armazenada em suportes precários que ficam degradados e tornam-se ilegíveis. Mas não é só uma questão de fazer backups para suportes mais modernos “Há uma abundância de diferentes códigos que visam transformar bits em imagens, vídeo e som. Devemos manter uma biblioteca deles, caso contrário, não haveria maneira de interpretar as informações armazenadas”. Em relação aos dados científicos, ele vê uma complicação adicional do problema, uma vez que “os dados de registro não são suficientes. É necessária a preservação dos metadados”, informa.

A solução proposta por Vinton Cerf é a de preservar cada tipo de software e de hardware para que eles nunca se tornem obsoletos – da mesma forma que em um museu, só que em formato digital, em servidores na nuvem: “A ideia de Cerf é fazer uma espécie de raio-X do conteúdo, do programa em que ele pode ser aberto e do sistema operacional juntos, com uma descrição da máquina onde este sistema está funcionando, e preservá-lo por longos períodos de tempo. Esta foto instantânea digital irá recriar o passado no futuro”. A padronização das descrições dos conteúdos, software e hardware é requisito para o sucesso da solução apontada, que recebeu o nome de “pergaminho digital”, e foi criado pelo cientista Mahadev Satyanarayanan, na Universidade Carnegie Mellon.

A proposta de Cerf é muito mais radical. “Direitos autorais precisam ser alterados para ter em conta a importância do arquivamento. Precisamos concordar que alguma instituição ou autoridade terá acesso aos softwares, com o compromisso de preservá-los juntamente com as informações”, disse ele. Códigos-fonte, linguagens de programação, compiladores, sistemas operacionais em suas diferentes versões, programas capazes de emular máquinas antigas […] Tudo isso deve ser arquivado. Além disso, mais pesquisas devem ser promovidas sobre padrões de software e preservação de longo prazo. “Devemos estar prontos para desistir de certa quantidade de liberdade em troca da preservação”, concluiu Cerf.

Após a queda do Império Romano, a Europa viveu a Idade Média, também conhecida como “Idade das Trevas”. Na ocasião, grande parte do conhecimento antigo se perdeu. Os manuscritos foram destruídos em guerras e incêndios ou tornaram-se ilegíveis antes de serem transcritos. Preciosos  conteúdos tiveram  de ser redescoberto séculos depois. De acordo com Vinton Cerf, podemos estar num ponto de viragem semelhante.  

A expressão “Idade das Trevas Digital” não é novidade. Ela apareceu no Fórum para a elaboração da Carta da Unesco para a Preservação do Patrimônio Digital, em 2003, e faz parte do texto da carta, adotada pelos 188 Estados Membros da Unesco. A preservação digital visa garantir que a informação digital permaneça acessível, interpretável e autêntica, mesmo na presença de uma plataforma tecnológica diferente.

Máquinas virtuais, museus de software, hardware e formatos já existem desde o milênio passado. Esse tipo de solução está relacionado com o que se convencionou chamar de “Arqueologia Digital”. A guarda dessas informações em larga escala e a sua localização em servidores na nuvem é que pode ser a novidade da proposta. Certamente um novo modelo de negócio para o Google.

Embora essa não seja a única solução de preservação, ela poderá ser adotada pela indústria para ampliar suas garantias de preservação dos documentos para aqueles que utilizam seus aplicativos, máquinas e formatos de documentos, especialmente para as pessoas físicas e pequenas empresas que não dispõem da infraestrutura das grandes corporações.  

A gravidade do problema tem resultado em diversos projetos de desenvolvimento de estratégias, padrões, critérios e políticas de preservação digital, além da realização de inúmeros eventos, como, por exemplo, a conferência da UNESCO, em Vancouver, em 2013, que reuniu especialistas para debater a questão. A preocupação é global. Especialmente no Brasil, porque, cada vez mais, instituições adotam sistemas de documentos e processos eletrônicos sem o estabelecimento de política de preservação.

Entre as diversas iniciativas de criação de padrões ou de soluções de preservação digital, ressalta-se o Programa LOCKSS (Lot Of Copies Keep Stuff Safe), criado a partir do software Lockss, idealizado pela equipe da biblioteca da Universidade de Stanford, que utiliza uma arquitetura distribuída para auxiliar os bibliotecários na preservação dos documentos publicados na internet, visando, principalmente, à continuidade de acesso a esses materiais. No Brasil, o Programa LOCKSS é integrado pela Rede Cariniana, coordenada pelo IBICT com a participação de diversas universidades e centros de pesquisa.

Arquivistas, bibliotecários e outros profissionais da informação que se preocupam com a preservação digital podem se beneficiar com a preocupação de gigantes como o Google e com o espaço crescente na mídia internacional, para convencer seus dirigentes de que a criação de políticas de preservação e de repositórios digitais seguros são soluções adequadas para garantir a preservação da memória institucional.

[1] BBC News Science & Environment. Google’s Vint Cerf warns of ‘digital Dark Age’ Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/news/science-environment-31450389>. Acesso em 14 fev. 2015.