A questão da guarda e da conservação de autos findos

A Associação Nacional dos Professores Universitários de História – ANPUH, em 21 de fevereiro, em matéria publicada em seu site intitulada “A destruição continua: a eliminação dos acervos judiciais sob o argumento da preservação, uma falácia” afirma que nenhum processo judicial deve ser eliminado e que as Recomendações ns. 46 e 37, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), são equivocadas porque “não existem critérios universalmente aceitos para definir o que é ou não histórico”. Questiona a eliminação seletiva feita pelas comissões de avaliação documental das instituições do Judiciário por considerar que essa “seleção tem potencial altamente lesivo aos documentos, amputando-os irreversivelmente”(1).

Os historiadores estão corretos, quando afirmam que qualquer documento pode se tornar fonte histórica. Idealmente, a Administração Pública poderia guardar todos os documentos produzidos, não apenas os processos judiciais, mas ainda os processos administrativos em matéria ambiental, previdenciária, da saúde, entre outros. Os recursos orçamentários necessários para preservar adequadamente toda a massa documental acumulada ao longo dos séculos não estão disponíveis nos orçamentos das instituições públicas. Preservar adequadamente pressupõe uma série de condições que precisam ser atendidas: a escolha do terreno onde será construído o arquivo, seco, livre de risco de inundação, raios, deslizamentos e infestações de cupins; o prédio, que deverá ser adequado ao acondicionamento de documentos, em termos de espaço físico, mobiliário, condições de resistência a cargas e previsão da necessidade de expansão; os recursos para a higienização e desinfestação de documentos, análise das informações e inclusão dos metadados em sistemas informatizados, para a recuperação dos documentos por pesquisadores e outros usuários, o que pressupõe uma equipe especializada, com arquivistas em número suficiente para a realização desse trabalho.

A eliminação de documentos está prevista em lei e ocorre regularmente na Administração Pública nos Três Poderes, mas infelizmente, nem sempre é feita observando-se as normas de Gestão Documental. A Lei n. 8.159, de 1991, em seu art. 3º, estabelece que “considera-se gestão de documentos o conjunto de procedimentos e operações técnicas referentes à sua produção, tramitação, uso, avaliação e arquivamento em fase corrente e intermediária, visando a sua eliminação ou recolhimento para guarda permanente” e, em seu art. 20, determina que esses procedimentos se aplicam aos processos judiciais: “Competem aos arquivos do Poder Judiciário Federal a gestão e o recolhimento dos documentos produzidos e recebidos pelo Poder Judiciário Federal no exercício de suas funções, tramitados em juízo e oriundos de cartórios e secretarias, bem como preservar e facultar o acesso aos documentos sob sua guarda”. Leis estaduais semelhantes foram editadas pelos Estados.

A seleção de documentos, para fins de guarda permanente ou eliminação, não é feita apenas pelas instituições do Judiciário, mas por todas aquelas que aplicam a orientação do art. 18 do Decreto n. 4.073, de 2002, que dispõe sobre a constituição de Comissões Permanentes de Avaliação de Documentos nos órgãos e entidades da Administração Pública Federal.

Paralelamente às normas de Gestão Documental estabelecidas pela Lei n. 8.159 e resoluções do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), existe a Lei n. 7.627, de 1987, nunca revogada, que autoriza a eliminação dos autos findos há mais de cinco anos na Justiça do Trabalho. Alguns tribunais regionais do trabalho aplicavam essa lei antes de o CNJ publicar a recomendação n. 37.

A guarda integral de toda a documentação produzida pelas instituições da justiça no exercício das suas atividades não é feita em nenhum país. Encontramos facilmente, na internet, normas e cronogramas de retenção e eliminação de documentos de cortes americanas, inglesas e australianas, entre outras. A título de exemplo, o cronograma geral de retenção e eliminação de registros e documentos judiciais do Estado de Maryland estabelece as regras para a transferência destes ao Arquivo do Estado e relaciona os métodos de eliminação, entre os quais se inclui até a incineração, prática que não respeita critérios ambientais, como os preconizados na Recomendação n. 37 do CNJ. O documento estabelece a guarda permanente e a transferência ao Arquivo do Estado dos processos criminais com trânsito em julgado e réus condenados por mais de vinte anos, além daqueles com pena de morte ou prisão perpétua. Nos demais casos, estabelece a guarda por vinte anos e depois a eliminação(2).  Observa-se que, mesmo sendo uma república federativa como é o Brasil, nos EUA, os arquivos judiciais podem transferir os documentos ao arquivo do Estado.

Na Recomendação n. 37, comissões de avaliação documentais compostas por profissionais de diversas áreas, inclusive historiadores, estabelecem o que guardar permanentemente e o que eliminar. Nos Estados Unidos, a “Política de Avaliação” do U.S. National Archives and Records Administration (NARA), de setembro de 2007, registra que a autoridade e responsabilidade para determinar a retenção e o descarte de registros (documentos) federais é do arquivista, funcionário público, conforme estabelecido em lei federal, capítulos 21, 29 e 33 (3302, 3303a) da Federal Records Act, 44 do United States Code(3)

O documento “Programação de Eliminação do Governo Britânico” estabelece que nem todas as informações podem ser mantidas indefinidamente. Somente os registros selecionados para a preservação permanente podem ser legalmente retidos e devem ser transferidos ao Arquivo Nacional depois de 30 anos da sua criação(4). Ressalta a necessidade de uma gestão adequada dos documentos e que o equilíbrio entre a guarda e a eliminação representa uma resposta à pergunta “Quanto tempo a informação é necessária?” E prevê a existência de tensões entre necessidades conflitantes que exigem resolução.

O documento informa que o Ato de Proteção de Dados (Data Protection Act), de 1998, e o Ato de Liberdade de Informação (Freedom of Information Act), de 2000, impuseram deveres mais rigorosos às autoridades públicas em relação à gestão adequada dos documentos e dados pessoais. Preconiza que os organismos públicos devem tomar medidas para evitar a alienação ad hoc de registros e garantir que a destinação final dos documentos esteja de acordo com as políticas estabelecidas.

Em outro extremo aos argumentos da ANPHU, o Presidente do TJSP, em entrevista ao Jornal Estado de S. Paulo, apresenta um dos grandes desafios da sua gestão: solucionar a questão dos autos findos do Tribunal, acumulados desde a sua criação, em 1874, até o presente. Ele informa que são 83 milhões de autos em arquivo, e que “370 mil são os processos tramitados até 1940, insuscetíveis de descarte, pois considerados todos como de valor histórico; 13 milhões foram produzidos de 1941 a 1986, sem nenhum cadastro no sistema informatizado; e 70 milhões de processos se originaram a partir de 1987, estes com algum tipo de registro de dados”(5).

Ele argumenta que o TJSP destina anualmente quase 40 milhões para a guarda do acervo de processos, que o cadastramento dos 83 milhões arquivados elevaria esse valor para quase 110 milhões por ano, recurso que o tribunal não dispõe e, caso dispusesse, deveria investir prioritariamente em informatização.

Difícil discordar da magnitude do problema enfrentado pelo presidente do TJSP, porém, impossível concordar com as suas proposições para esse tema. A partir de 1995, o TJSP terceirizou a guarda de processos e, desde então, os processos estão armazenados, utilizando até recursos de identificação por radiofrequência (RFID), registrados pelos próprios servidores do tribunal em sistema da empresa contratada. Estratégias contratuais diferentes, como, por exemplo, o registro dos processos em sistema informatizado da empresa compatível com os sistemas do tribunal, observando normas de Gestão Documental, poderiam ter sido utilizadas para minimizar o problema. A terceirização da guarda, quando não inclui minimamente o cadastramento dos processos e o acesso do tribunal a essas informações, representa o escamoteamento de um problema, que só se avolumará. 

A alternativa de ofertar os autos findos aos escritórios de advocacia, instituições de pesquisa, universidade e arquivos públicos seria de grande prejuízo para a memória do TJSP e exigiria o cadastramento mínimo desses processos para a elaboração dos editais. Melhor seria a aplicação das orientações da Recomendação n. 37 do CNJ, inicialmente aos processos de massa, que resultaria na guarda amostral das ações previdenciárias, das execuções fiscais, entre outras e a criação de um fundo ou fundação, com o apoio das instituições interessadas nos processos do TJSP, para auxiliarem na obtenção de recursos, visando à organização dos arquivos e à eliminação dos processos sem valor permanente, o que reduziria sobremaneira a massa documental.

A Recomendação n. 37 apresenta um conjunto de boas práticas aderentes às dos países que são referência em Gestão Documental, muitas delas implantadas na Justiça Federal desde 1999, ano de aprovação das primeiras normas do seu Programa de Gestão Documental, que inovou com o estabelecimento da guarda amostral para as ações de massa e da lista de verificação para a baixa definitiva de processos e outras medidas adotadas na recomendação do CNJ.  

Na Justiça Estadual merecem destaque os investimentos do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e do Distrito Federal. Mas nem na Justiça Federal, tampouco nos TJs mencionados a questão está resolvida. O trabalho é moroso e exige investimentos.

Referências

  1. A eliminação dos acervos judiciais sob o argumento da preservação, uma falácia. 21/02/2014. Disponível em: http://www.anpuh.org/informativo/view?ID_INFORMATIVO=4548  Acesso em: 25/3/2014.
  2. RECORDS Retention and Disposal Schedule for Maryland Circuit Courts. P. Disponível em : http://www.courts.state.md.us/circuit/pdfs/retentionschedule_2330.pdf Acesso em : 22/3/2014.
  3. US National Archives and Records Administration. Strategic Directions: Appraisal Policy. September 2007. Disponível em: http://translate.google.com.br/translate?hl=pt-BR&sl=en&tl=pt&u=http%3A%2F%2Fwww.archives.gov%2Frecords-mgmt%2Finitiatives%2Fappraisal.html&anno=2 Acesso em: 22/3/2014.
  4. THE National Archives. Disposal scheduling. Disponível em: http://www.nationalarchives.gov.uk/documents/information-management/sched_disposal.pdf Acesso em: 22/2/2014.
  5. Nalini, José Renato. Não há dinheiro que baste. O Estado de São Paulo. 12/3/2014. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,nao-ha-dinheiro-que-baste,1139847,0.htm Acesso em: 22/3/2014.