Digitalização de processos judiciais em tramitação e a curadoria digital

Desde a promulgação da Lei n. 11.419, em dezembro de 2006, alterando o Código de Processo Civil e autorizando a informatização do processo judicial, os tribunais brasileiros iniciaram a corrida para a transformação dos sistemas processuais referenciais – que incluem apenas os metadados do documento e remetem aos processos em papel – para os denominados “sistemas de processo eletrônico”.

Em 2010, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tornou-se “o primeiro tribunal nacional do mundo totalmente virtualizado“ e deixou de receber processos em papel, obrigando a informatização das instâncias inferiores.

Desde então, para o envio de autos ao STJ, tornou-se necessária a digitalização destes, em todo o país, bem como sua inserção nos diversos sistemas utilizados pelos tribunais, inclusive o PJ.e, desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Assim, os 90 milhões de processos em tramitação no Judiciário brasileiro[1], sob o patrocínio do art. 8º da supramencionada lei, têm sido digitalizados, passando a tramitar em formato digital, e seus originais, destruídos sem a gestão documental, CPAD, seleção por tabela de temporalidade, ou certificação digital dos documentos digitalizados.

O § 1º do art. 11º da referida lei estabelece que os extratos digitais e documentos digitalizados e juntados aos autos pelos órgãos da Justiça, Ministério Público e seus auxiliares, procuradorias, autoridades judiciais, repartições públicas em geral e advogados públicos e privados têm a mesma força probante dos originais, ressalvada a alegação motivada e fundamentada de adulteração antes ou durante o processo de digitalização.

O § 2º determina que a arguição de falsidade do documento original será processada eletronicamente na forma da lei processual em vigor, e o § 3º, que os originais dos documentos objetos da arguição de falsidade deverão ser preservados pelo seu detentor até o trâmite em julgado da sentença ou, quando admitida, até o final do prazo para a interposição de recursos.

No entanto, a lei não definiu prazo para a propositura de ação de arguição de falsidade porque essa ação é cabível em qualquer tempo, e muitos tribunais, em seus atos internos, fixaram em 30 dias o limite para a eliminação dos originais dos documentos digitalizados.

A despeito desse fato, estabelece o § 5º do art. 12 que a digitalização dos autos em papel, em tramitação ou já arquivados deve ser precedida de publicação de editais de intimação ou da intimação pessoal das partes e seus procuradores, para que, no prazo preclusivo de 30 dias, se manifestem sobre o desejo de manter pessoalmente a guarda de algum dos documentos originais[2].

Assim sendo, sem edital de eliminação ou notificação das partes[3], após 30 dias da digitalização, o documento original é destruído, não havendo mais a possibilidade de  impetrar uma ação de arguição de falsidade de um documento digitalizado no Tribunal de Justiça da Amazônia, por exemplo, consoante o disposto na Resolução n 15/2011 daquele Tribunal[4].

 Infelizmente, nos últimos anos, normas como as do TJAM, que não observam princípios de gestão e preservação da documentação institucional, digital ou não, têm sido aprovadas pela maioria dos tribunais. E, mesmo considerando-se a existência de edital de eliminação ou de notificação das partes, isso ainda não seria suficiente, em termos de gestão documental, para a garantia da preservação digital. A eliminação de processos judiciais, com transito em julgado ou em tramitação, no todo ou em parte, só deveria ocorrer mediante avaliação e cumprimento dos prazos estabelecidos em tabelas de temporalidade.

A digitalização em massa, em muitos casos, tem sido realizada por terceiros, sem a conferência minuciosa por parte do contratante. Posteriormente, esses documentos digitalizados são incluídos em sistemas que não possuem os metadados necessários para possibilitar a recuperação da maioria das peças anexadas ao processo digital.

A digitalização dos processos em tramitação e a eliminação dos documentos originais que formam esses autos estão em fragrante desacordo com a Lei n. 12.682/2012, que, em seu art. 6º, determina que os registros públicos originais, ainda que digitalizados, deverão ser preservados de acordo com o disposto na legislação pertinente.  Segundo essa lei, documento que nasce em papel assim continuará até a sua destinação final, seja a guarda permanente, seja a eliminação.

 Ao promulgar a Lei n. 12.682/2012, a presidente Dilma Rousseff vetou a equiparação, para fins probatórios, dos documentos digitalizados aos seus originais, bem como o mesmo efeito jurídico conferido aos documentos microfilmados.

Diferentemente da Lei n. 11.419/2006, do processo judicial eletrônico, a Lei n. 12.682/2012 exige que o processo de digitalização empregue certificado digital emitido de acordo com a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil).

Na fundamentação dos vetos, a Presidente afirma que “ao regular a produção de efeitos jurídicos dos documentos resultantes do processo de digitalização de forma distinta, os dispositivos ensejariam insegurança jurídica”. Além disso, destaca que o projeto trata de forma assistemática os conceitos de “documento digital”, “documento digitalizado” e “documento original”, sem a observância, segundo ela, do procedimento previsto na legislação arquivística.

O entendimento da Lei n. 12.682/2012 foi o do Comitê Gestor do Programa Nacional de Gestão Documental e Memória do Poder Judiciário (Proname), que fixou procedimentos para a gestão documental integral e incluiu, entre as suas recomendações, a manutenção dos documentos em ambiente físico ou eletrônico seguro, além da implementação de estratégias de preservação desses documentos, desde sua produção e pelo tempo de guarda definido na tabela de temporalidade.

Os procedimentos definidos pelo Proname são exemplos de boas práticas em Gestão Documental, adequados aos tempos de processo judicial eletrônico. Lamentavelmente, tais orientações não têm força normativa porque foram estabelecidas por uma recomendação do CNJ e não por uma resolução, enquanto as práticas que não observam os procedimentos previstos na legislação arquivística, como bem fundamentou a Presidente Dilma, são fixadas em lei ou resolução dos tribunais.

Tenho afirmado que, da mesma forma que a alta inflação resultou na informatização e modernização do sistema bancário brasileiro, em razão do volume absurdo de demandas, o Judiciário brasileiro tem vivenciado um processo de informatização sem precedentes no mundo.

Tal processo de informatização, no entanto, precisa ser acompanhado da implantação de política de preservação digital. Além da questão mais urgente de preservação dos processos judiciais e dos documentos originais em papel que os integram, o Judiciário precisa minimamente estabelecer os procedimentos adequados para garantir que a memória da sociedade brasileira seja adequadamente preservada.

Questões práticas de curadoria digital ainda necessitam ser definidas pelo CNJ a partir de proposição do Proname. A título de exemplo, sugiro a fixação de regras para a guarda de um conjunto mais amplo de documentos digitais. Em tempos de mídias de armazenamento cada vez mais baratas, não há a necessidade de se selecionarem e eliminarem todos os documentos que a CPAD entender serem isentos de valor permanente. Podem-se estabelecer prazos para a preservação dos processos em modo on line e off line, de forma a não onerar os tempos de resposta dos sistemas e outras práticas que garantam a boa gestão de dados nos ambientes complexos do Judiciário.

O desenvolvimento do MoReq-Jus, um modelo de dados adequado aos sistemas de processos judiciais digitais, representou uma boa prática de curadoria digital. No entanto, esse modelo, por si só, não tem o condão de garantir a preservação da informação digital, especialmente se os sistemas não contemplarem os requisitos nele delineados.



[1]  Dados do Justiça em Números, divulgados em novembro de 2012, relativos a dezembro de 2013, disponíveis no site do CNJ.

[2]  Estabelece o § 5º do art. 12 que, quando não puderem ser digitalizados, em razão do volume ou de elegibilidade, a guarda dos documentos pelas partes ensejará a apresentação destes ao cartório, no prazo de 10 dias, se necessário, para o julgamento do processo.

[3] A Lei estabelece que as intimações sejam nominais, embora isso raramente tenha acontecido.

[4]  Resolução n. 15, de 29 de Novembro de 2011. Autoriza a implantação do processo eletrônico/virtual em todos os Órgãos do Poder Judiciário do Estado do Amazonas e regulamenta o peticionamento eletrônico e o descarte de documentos.

Disponível em: http://www.tjam.jus.br/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=324&Itemid=169&limitstart=10

Acesso em: 10/03/2013.